Relatos de Expedições
 

 

O complicado e perigoso Rio Pelotas, entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul

 

" A aquisição das primeiras cartas topográficas data de 1997, quando minha esposa e eu começamos a nos interessar por este rio que, em nossa imaginação, poderia ser um dos mais belos em todo o Brasil, senão no mundo. Uma topografia extremamente acidentada, um rio encaixado em um canyon que se estende por mais de 200 quilômetros, uma vegetação luxuriante - incluindo resquícios de grande porte das famosas matas de Araucárias - e a quase total ausência do "bicho-homem" nas proximidades eram os motivos de atração; entretanto, nos planejamentos, de muitas dúvidas e preocupações também.

Com a posterior formação de nosso grupo de canoagem, agregando pessoas (amigos clientes) de todo o Brasil interessadas em expedições em canoas canadenses, a possibilidade de explorar este destino entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul começou a surgir novamente. Alguns comentários sobre o rio eram lançados vez ou outra em nosso canal de mensagens pela internet até que, em meados de 2005, o rio entrou para a "lista de destinos certos", com o início dos preparativos para uma expedição de reconhecimento. A primeira tentativa, organizada para agosto de 2005, foi frustrada pelas fortes chuvas e ciclones que literalmente arrasaram a região, obrigando-nos a postergar os planos e perder a presença de vários membros que, infelizmente, não poderiam participar em outra data. Mesmo com o grupo reduzido a apenas 4 pessoas acertamos a "descida" para a segunda semana de novembro, mantendo uma expectativa de cumprir 180 km de percurso em 8 a 10 dias. Hoje sabemos o quanto esta expectativa de rendimento é irreal para este perigoso rio! Mas não vamos nos adiantar nos detalhes dessa história....

Os quatro participantes finais foram Alexandre Leone - empresário, de São Paulo, Alexandre Lorenzi - cirurgião dentista, de Rio Grande do Sul, Antonio Carlos Osse - biólogo e fabricante de canoas canadenses, de São Paulo e Marcus Bauermann - advogado e empresário, de Santa Catarina. Contamos também com o valiosíssimo apoio logístico de Fernanda Lorenzi, que percorreu centenas de quilômetros pelas precárias estradas da região em nosso auxílio. Todos seguiram "solo" em canoas de 15 pés.

Após 16 horas de viagem, com as orelhas já vermelhas de tanto "besteirol" emanado pelo novo amigo Marcus, chegamos ao ponto de encontro na cidade de Bom Jesus, RS. Para escapar da noite que se aproximava, rumamos rapidamente ao nosso primeiro ponto de acampamento e entrada no rio. Foram 35km por uma estrada em bom estado de conservação e um trecho bastante íngreme na descida pela borda do canyon, de onde raramente conseguíamos ver o rio.

Fomos brindados pelo casal Lorenzi com um delicioso churrasco gaúcho, com direito a show pirotécnico sobre nossa improvisada churrasqueira de chão.

Ficamos por horas conversando, comendo e bebendo em torno do fogo, embora houvesse algum nervosismo em relação ao que nos aguardava no dia seguinte. O aspecto selvagem da região, o forte barulho de uma corredeira próxima e a fria escuridão da noite em nada acalmavam o espírito. Após 40 horas sem dormir e muito asfalto corrido, desmaiei de cansaço em minha pequena barraca.

No dia seguinte acordo com a conversa de algumas pessoas. Entre elas estão o Sargento Ceron e o Soldado Clodomiro, do 3º Pelotão Ambiental de Passo Fundo, RS. Estavam ali para acompanhar nossa partida e, provavelmente, para verificar quem eram aqueles "doidos" que resolveram enfrentar o rio Pelotas a remo.... Observe-se que nem a própria polícia ambiental do Estado conhece o trecho de rio que estávamos por descer, de modo que poucas informações puderam dar. De qualquer modo, e por segurança, acertamos como prazo máximo para contato (80 quilômetros abaixo, na única ponte que cruza o rio), o sábado seguinte, ou seja, 5 dias depois de nossa partida. Em clima de "brincadeira séria" concordamos que, após este prazo, poderiam começar a organizar uma busca rio acima!

Iniciamos nossa entrada na água! Dali não haveria mais volta, o que me deu um pequeno frio na barriga. O canyon fechado e absolutamente desabitado pelos próximos 80km representavam um risco muito grande caso alguma coisa saísse errado. Mas, estando razoavelmente preparados para a situação, nos desligamos da margem e iniciamos a descida.

Em menos de 10 minutos já enfrentávamos nossa primeira corredeira, só para aquecer os sentidos. Organizamos o grupo com um espaçamento de aproximadamente 30 metros entre barcos, sendo que eu sempre iria na frente em busca de um caminho mais seguro. Como havíamos ensaiado os sinais de orientação à distância, poderia tentar ajudar os que vinham atrás na busca de um caminho melhor, caso minha opção não fosse a mais segura. Nas corredeiras maiores sempre optamos por parar e analisar o melhor percurso de um ponto fora da água, garantindo assim ainda mais segurança.

Como que em um roteiro programado, as corredeiras foram aumentando em tamanho e risco. Passamos uma a uma......até a corredeira no oitavo quilômetro de descida. Após esbarrar em uma pedra submersa que me desviou do curso planejado, entrei "de lado" em uma onda estacionária mais alta que instantaneamente virou minha canoa. Foi só o tempo de pensar - "cacil....."! O "da" já saiu debaixo d'água! O detalhe é que a corredeira ainda continuava em frente por dezenas de metros, sendo seguida por mais uma seqüência de quedas mais complicadas. Segui dentro da água segurando equipamentos e a própria canoa, tomando enorme cuidado para sempre ficar atrás dela, agora embarcada com quase duas toneladas de água e seguindo rio abaixo em alta velocidade. Embora a profundidade oscilasse ao redor de apenas 1,5 metros, a rapidez da descida e o peso impediam qualquer tentativa de parada. Notei dois sacos estanques e um remo sobressalente que se desprendiam da carga e seguiam rio abaixo poucos metros à frente. Não havia nada a fazer, exceto esperar que eles ficassem enroscados em algum acidente no meio do caminho. Mais uns 40 metros à frente avistei uma pequena ilha de pedras e resolvi orientar minha descida para lá, mesmo sabendo do risco de trincar a canoa no impacto de chegada. A outra opção parecia muito mais arriscada, pois a corredeira seguinte mostrava uma queda de água mais alta e em curva, ou seja, não havia como prever o que viria depois. Neste momento fui ultrapassado pelas canoas dos companheiros de descida, que conseguiram resgatar apenas um saco estanque antes da próxima queda. Como previsto, parei na pequena ilha de pedras, mas não sem escutar os estalidos do casco ultra carregado batendo contra o obstáculo. A força da água ainda ameaçava me arrastar! Milhares de coisas passavam por minha cabeça, especialmente a perda de meu chapéu de estimação e outros equipamentos... De qualquer maneira, estava livre do risco de cair na próxima corredeira, o que poderia ter conseqüências bem mais graves. Fui ajudado pelo Marcus, que mostrou enorme coragem e habilidade neste momento crítico. Esvaziada a canoa verifiquei apenas algumas pequenas trincas (santo Kevlar, Batman!), de modo que ainda pude rumar remando para a margem.

Passado o susto, encontramos um bom ponto para nosso primeiro acampamento, nas proximidades de mais uma corredeira que certamente exigiria portagem. Verificamos os caminhos possíveis e chegamos à conclusão que aquela seria uma looonga portagem (quase dois quilômetros!) através da vegetação da margem. Aliás, de modo bastante curioso, verificamos uma margem (esquerda, no lado de RS) até que bem accessível, com árvores de médio porte sem sub-bosque e algumas trilhas de animais que facilitavam o deslocamento. Entretanto, ficamos muito apreensivos ao observamos a deposição de enorme quantidade de detritos e troncos de árvores arrastados pelas enchentes a mais de 8 metros de altura, inclusive sobre outras árvores. Isto nos dava uma clara idéia do que seria aquele rio após alguma chuva intensa nas cabeceiras localizadas nas serras gerais de Santa Catarina. Histórias contadas por moradores locais relatam enchentes instantâneas com ondas de até 2 metros descendo o rio em altíssima velocidade e arrastando tudo (e todos!) que estiverem no caminho! Por sorte pegamos uma semana de tempo estável, o que é até meio raro para esta região. Completamos 50% da portagem em meio ao mato e acampamos em um local bastante agradável, com farta disponibilidade de lenha para nosso fogo.

Embora meu saco estanque com roupas tenha se perdido, ainda havia em outro uma blusa e um impermeável de emergência, de modo que estaria protegido do frio intenso esperado para a madrugada. Uma breve ameaça de chuvisco nos fez montar duas coberturas para a cozinha.

Passamos uma noite muito agradável, mas já tomávamos consciência de que nossa expedição estava se configurando mais como uma aventura, dada a real incapacidade de prevermos com segurança o futuro próximo. Uma análise detalhada das cartas topográficas nos trouxe certa inquietação, pois notamos que não haveria qualquer ponto de saída nos próximos 60 quilômetros, exceto por uma trilha marcada 10 quilômetros abaixo pelo rio (o que numa carta do IBGE com 25 anos de idade poderia ter os mais diversos significados!). Fizemos uma pequena análise de riscos e rendimento e notamos que, naquele passo, nunca chegaríamos ao ponto final dentro do prazo estimado. E o rio não mostrava qualquer sinal de que mudaria de configuração até lá! Pelo contrário talvez....

Havia uma grande dúvida pairando no ar.... Pessoalmente comecei a enxergar mais riscos que vantagens em continuar - um acidente ali poderia ter conseqüências muito complicadas! Expus estas dúvidas ao grupo e, mesmo em meio a uma boa dose de decepção, resolvemos abortar a descida na tal trilha que nos "aguardava" pouco abaixo, caso ainda existisse, claro! Acordamos cedo no dia seguinte para completar a portagem. A corredeira que ultrapassávamos por terra era conhecida como "funil", onde 90% da água do rio se concentrava em uma passagem de uns 6 metros de largura, formando uma onda estacionária praticamente instransponível. Por terra a situação não era muito melhor, pois o ponto de acesso/retorno ao rio estava distante e era complicado, com ilhas de pedra a serem transpostas.

Finalmente retornamos ao rio para mais algumas seqüências de corredeiras. Como previsto, o rio não mudaria sua configuração tão cedo.... Nunca cumpriríamos o cronograma previsto frente à necessidade de analisarmos tantas corredeiras e eventuais portagens. Um rendimento de apenas 8 a 10km por dia se mostrava mais real! Seguimos transpondo os obstáculos....

Um dos trechos mais interessantes foi um pequeno e estreito braço lateral (atrás de uma ilha!) que nos livrou de outra forte corredeira.

Marquei no GPS o ponto onde eventualmente encontraríamos a tal trilha e usei a função "go to" para garantir que não passaríamos dali. Faltando apenas 1km de distância nos deparamos com outra grande corredeira! Fui pelo lado direito para analisar a passagem, enquanto os outros encostaram na margem esquerda aguardando. Talvez por uma indicação divina, o Leone resolveu explorar uma pequena abertura na vegetação da margem em busca de uma trilha de portagem. Por rádio me informaram que haviam encontrado uma trilha em bom estado de conservação, ou seja, com algum uso humano freqüente! Seria esta a "nossa" trilha? Atravessei o rio e me juntei aos outros. De fato, havia indicação de uso, incluindo um trecho mais largo claramente aberto por trator há uns muitos anos (árvores de porte no meio da "estrada" garantiam esta observação!). Já eram quase 4 horas da tarde e resolvemos parar por ali mesmo. Se descêssemos a corredeira não teríamos mais como retornar àquele ponto, ou seja, poderíamos perder para sempre a tal trilha.... Descarregamos alguma tralha e nos dividimos em dois grupos: um que partiria para explorar os arredores e outro que montaria o acampamento. Após muito caminhar canyon acima (por lugares absolutamente maravilhosos!), o grupo de exploração (do qual eu fazia parte!) chegou a um ponto final em meio ao mato! A trilha simplesmente desaparecia no nada! Devo admitir que fiquei um tanto preocupado com nossa situação!!!

Retornamos morro abaixo. Agora sim, por pura sorte, observamos a existência de uma minúscula trilha alternativa a apenas 100 metros de nossas barracas. Resolvemos explorar e.....surpresa.....pouco acima chegamos em uma estrada! Sim, uma estrada, cascalhada e em "boas" condições. Era um sinal claro de que, dali, encontraríamos alguma forma de sair do profundo vale do Rio Pelotas. A sensação de alívio que senti foi simplesmente indescritível! Retornamos com as boas novas ao acampamento e partimos para um merecido banho de rio (muito gelado aliás!). Fizemos nossa janta, conversamos bastante, imaginamos o que nos aguardaria no dia seguinte. Decidimos novamente dividir o grupo em duas equipes: uma que partiria bem cedo em busca de auxílio, nem que fosse para caminhar até Bom Jesus (40km), e outra que traria todos os equipamentos trilha acima, até a beira da tal estrada. Fomos dormir mais aliviados..... No dia seguinte partimos (Alexandre Lorenzi e eu) rumo ao desconhecido.

Por vias das dúvidas, resolvi levar minha mochila com equipamento de camping, algum alimento, água, mapas e os eletrônicos fundamentais (celular rádio e GPS). Na subida do canyon observamos que nenhum carro normal jamais chegaria ao ponto onde desembarcamos. O sonho de sermos resgatado pelos amigos jipeiros do Lorenzi dava lugar à realidade de que teríamos que encontrar um trator "traçado" e muito potente para nos tirar daquele buraco. Seguimos subindo e subindo, de olho em paisagens cada vez mais belas. Vez ou outra enxergávamos o rio, lá embaixo..... O forte ruído das corredeiras não nos abandonava, mesmo a essa distância! No meio do caminho chegamos a uma encruzilhada, obviamente sem qualquer indicação ou placa. O GPS foi de enorme valor na hora de optarmos por um lado a seguir. Passamos pelos primeiros sinais de ocupação humana, com 3 casas abandonadas. Mais um pouco à frente e vimos a primeira pessoa local, o Sr. João de Deus, que nos deu algumas indicações de pessoas que poderiam nos ajudar.

Pouco mais adiante passamos por outra espécie de aventura: passar por um corredor formado por mais de uma centena de caixas de abelhas colocadas nas duas margens da estrada. Por segurança, nos metemos no meio do mato!

Continuamos caminhando por um bom tempo sob o forte calor quando, finalmente, avistamos as primeiras casas ocupadas. Primeiro batemos à porta do Sr. Eunilton e sua família, que nos indicou o Sr. Alceu como proprietário do único trator que conseguiria descer até a margem do Pelotas.

Fomos então à casa do Sr. Alceu, pouco mais adiante na estrada. E lá estava ele, com um sorriso que só se encontra nestes locais distantes e perdidos! Fomos recebidos com muita cortesia, incluindo almoço, além da promessa de nos salvar daquela enrascada em que nos metemos.

Ficamos sabendo que não éramos os primeiros! Um grupo de caiaquistas já havia passado pelo mesmo transtorno, mas destroçaram completamente um barco nas corredeiras e abandonaram os outros à própria sorte na margem do rio. Nossa intenção era resgatar as canoas, o que nos levou a um circuito de idas e vindas atrás de um carroção que pudesse ser acoplado ao trator. Já eram mais de 6 horas da tarde quando acertamos o conjunto para partirmos em busca dos dois que ficaram lá embaixo. Retornamos pelos 15 quilômetros de estrada/trilha sacolejando como loucos sobre aquele carroção. O fim de tarde estava espetacular! Chegando mais próximos da borda do canyon conseguimos um contato pelo rádio com a equipe de baixo (que havia montado um "acampamento sui generis"!). Chegaríamos lá em mais 20 ou 30 minutos, já no meio do escuro. Para completar a situação pegamos uma chuva razoável, o que deixou a estrada em situação ainda mais precária.

Encontramos o pessoal no escuro. Não sabiam se seriam resgatados de fato! Ao verem o trator perceberam que a espera chegara ao fim! Desmontamos tudo e carregamos as tralhas no carroção, depois as canoas.

Na viagem de volta o Sr. Alceu mostrou toda a sua habilidade com seu belo trator! Quase ficamos presos em um atoleiro na subida do canyon, mas seguimos em frente patinando para lá e para cá. Com os pés presos entre as canoas cumprimos aqueles 15km de estrada numa mistura de cansaço, alívio e dor. Chegamos à casa do Sr. Alceu já tarde da noite, mas a hospitalidade continuava. Fomos recebidos com uma janta e camas prontas. Quem resiste??? Dormi rapidamente para acordar na manhã seguinte ainda bem cedo. Acompanhei as operações com o gado de criação de nosso cicerone, levando suas vacas para a ordenha do dia. Aproveitei para dar uma volta no local e apreciar de perto as construções dos longos muros de divisa em taipa de pedra, resquícios da época dos escravos.

Uma ou duas horas depois, em meio a um café da manhã com direito a bolinhos, pão caseiro etc etc, ouvimos a chegada de nossos carros, vindo de Caxias do Sul. A aventura estava terminada! Carregamos as canoas e cargas, nos despedimos já com muita saudade da hospitalidade local e pegamos nosso rumo a São Paulo. Mais 16 horas de asfalto sem parar e chegamos em casa. Cansados, mas certos de que cada minuto dos últimos 7 dias valeu seu tempo em ouro.

Cabe ressaltar que toda a região do vale do Rio Pelotas está ameaçada pela construção de mais uma usina hidrelétrica, eliminando para sempre da face da terra estas paisagens absolutamente maravilhosas. Esperamos organizar uma nova expedição ao local (agora com muito mais tempo disponível), antes que isso aconteça.

 

Aos leitores que chegaram até aqui, cabe também ressaltar que este tipo de expedição exige um ótimo preparo e planejamento. Não aconselhamos o uso das canoas em corredeiras acima do grau I de dificuldade, especialmente se todo restante da expedição estiver sendo colocado em risco. Portagens, embora cansativas, são a forma mais segura de transpor corredeiras longas e ou desconhecidas. Procure treinar antes (e por muitos quilômetros!!!) em represas e, depois, em rios sem corredeiras. O tipo de expedição como a descrita acima pode ser considerado como "extremo", dados os riscos envolvidos e absoluta precariedade de socorro e rusticidade do local.

mesmo assim..... RIO PELOTAS....aguarde nosso breve retorno!!!!!!!! :)