Relatos de Expedições
 

 

Expedição em Canoas Canadenses aos Rios Guaporé e Verde - Mato Grosso, Brasil (julho/2007).

 

Texto/Fotos: Antonio Carlos Osse, Companhia de Canoagem 2007

 

Como sempre, a agitação do grupo atinge seu máximo poucos dias antes da partida. Dessa vez optamos por um rio que faz a transição entre os ambientes pantaneiros e amazônicos, na expectativa de visualizarmos uma diversidade biológica extra. Após muita pesquisa sobre cartas topográficas e fotos de satélite, concordamos com os Rios Guaporé e Verde, que estabelecem a fronteira entre Brasil e Bolívia no extremo noroeste do Estado de Mato Grosso. A ausência de reservas indígenas e a crescente pressão degradadora da fronteira agrícola confirmaram a opção; algo como um "veja agora antes que desapareça" !

Paisagem Rio Guaporé - MT (foto: Eduardo Carvalho)

Nosso grupo de expedições em canoas canadenses já percorreu milhares de quilômetros de rios em todo o Brasil, mas há muito mais por ver. Assim, em oito pessoas, partimos no dia 29 de junho para mais essa aventura.

Canoístas a caminho do destino

O destino inicial foi a simpática cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, capital do Estado até 1835 e palco de intensa atividade extrativista nos tempos imperiais. Com o declínio da mineração de ouro perdeu seu status político e econômico, caindo em esquecimento até os dias de hoje. Por outro lado, lá sobrevivem tradições e atividades de riquíssimo valor cultural que podem ser intensamente vivenciadas durante as festas de São Benedito, em meados do mês de julho. Trabalhos iniciais de arqueologia também estão revelando seu rico passado de mistura cultural indígena, negra e portuguesa.

Festa de São Benedito (foto: Mário Friedlander)

O rio Guaporé passa às margens da cidade mas, por orientação de nosso "guia" local (Mário Friedlander ), iniciamos a remada 20km a montante, no local denominado Formosa. O percurso total estimado é de 230km, até Betânia, onde existe uma pequena pousada (Paço das Onças) para pescadores e aventureiros.

Trecho inicial com Serra Ricardo Franco ao fundo

Com um cronograma mais solto e com a certeza de não termos portagens pela frente, nos demos ao luxo de seguirmos todos "solo", isto é, apenas um remador por canoa. Isto significa conforto e capacidade de carga ao extremo, que só as canoas canadenses podem oferecer, mesmo se estivéssemos em duplas.

 

Canoas Canadenses são o barco ideal para expedições em rios

 

Após os dois dias de viagem entre São Paulo e o ponto inicial (2300km), ainda gastamos mais um dia para resolver a logística dos carros, isto é, levar os veículos até o ponto final e acertar o retorno dos motoristas. Para isso contamos com o apoio de um táxi local. Aliás, muita gente acha que este é um detalhe complicado para longas viagens por rios, mas a experiência tem mostrado que, mesmo nos confins do país, sempre se encontra um táxi ou alguém com um "fuscão" interessado em fazer um "carretinho". Henry Ford ficaria orgulhoso em saber qual o alcance atingido por seu "invento"...

Dois carros, oito remadores, oito canoas!

 

Tudo resolvido, iniciamos a descida no dia 3 de julho em um trecho de extrema beleza, incluindo buritizais repletos de ninhais de grandes aves, araras, tucanos, ariranhas e até a eventual companhia de botos.

 

Companhia dos botos durante todo o percurso (foto: E. Carvalho)

 

Dada a proximidade da cidade me vi em uma situação inusitada: canoa encostada na margem, sob centenas de aves me olhando com curiosidade, e com um telefone celular em mãos relatando o ambiente para minha filha de 3 anos "lá" em São Paulo.

Celular em pleno rio "remoto" ??? (foto: E. Carvalho)

 

Já pela hora do almoço passávamos em frente do portinho de Vila Bela, onde aproveitamos para almoçar uma última refeição "em pratos de verdade"; daí para frente estaríamos isolados de tudo e de todos (ou pelo menos assim esperávamos!).

Vila dos Pescadores em Vila Bela SS Trindade - MT (foto: Eurico Oliveira)

 

No final do dia confirmamos os comentários de alguns moradores locais: o rio ainda estava muito cheio e seria complicado encontrar bons locais para acampamentos. Em lugar das esperadas praias tivemos que nos habituar às chamadas "pascanas" - áreas elevadas nas margens usadas pelos pescadores regionais para seus acampamentos. Uma mistura de incredulidade com certo descompasso inicial acabou dividindo o grupo na primeira noite: cinco em uma pascana, três em outra....mas nada de praias!

Pascana nas margens do Rio Guaporé (foto: E. Oliveira)

 

Acampar às margens de um belo rio, sob as árvores, na companhia dos sons da floresta e com um céu escandalosamente repleto de estrelas é uma das experiências mais marcantes que posso recomendar às pessoas. Nos traz à real dimensão do mundo (ou seria à nossa insignificância?). Na manhã seguinte partimos bem cedo e passamos pelos três desgarrados, que ainda dormiam. Obviamente não perdemos a chance de "aprontar uma" e acordá-los com um susto! Depois tocamos em frente devagar. O rio é largo (para os padrões da canoagem!) e acompanhado por uma vegetação ciliar estreita e rala.

Paisagem do Rio Guaporé - MT (foto: E. Carvalho)

 

Pastos abertos a força e fogo, destruindo o cerrado original, podem ser vistos a poucos metros da margem. Esperamos que essa degradação seja apenas em função da relativa proximidade da cidade ou de estradas de acesso. As cartas topográficas do Exército, datadas de 1974 (dá para acreditar?), indicam vegetação fechada para todo o percurso, mas pelas fotos de satélite já sabíamos que a invasão da pecuária está transformando a paisagem.

O gado vai invadindo toda a paisagem!

 

Devido ao relevo extremamente plano e um regime de cheias intensas, o rio Guaporé já assumiu diferentes cursos e deixou para trás inúmeras baías, braços e "furados". Um dos grandes atrativos dessa expedição é a possibilidade de explorar alguns desses "desvios", bem como tentar subir alguns afluentes menores, como os rios Galera e Sararé. Nas baías, com suas águas mais calmas e transparentes, é comum avistar outros tipos de vegetação e uma avifauna mais diversificada.

Baía do Rio Guaporé com Vitórias Régias (foto: E. Oliveira)

 

Os dias da expedição se sucedem de forma organizada. O ritmo vai afinando conforme os participantes melhoram seu entrosamento com os equipamentos e suas rotinas. Desmontar o acampamento no sexto dia é bem mais rápido e eficiente que no segundo, por exemplo. Diariamente iniciamos a remada por volta das 7 horas da manhã para evitar o calor e ventos mais fortes da tarde, bem como para obter uma visão mais "elegante" do ambiente, com a luz do sol ainda baixa e mais avermelhada.

Remada iniciando ao nascer do sol.

 

Com uma média de 6 horas de remada por dia procuramos cumprir uma meta de 25 a 30km entre o rio e incursões exploratórias. De qualquer maneira, sempre fazemos intervalos/paradas para descanso a cada uma hora e meia, garantindo que o dia não seja exaustivo. Entre três e meia e quatro horas da tarde já começamos a procurar um bom ponto para o pernoite.

Parada para banho, descanso e alimentação (foto: E. Carvalho)

 

No quinto dia de viagem, em torno de 145km completados, tivemos uma pequena surpresa: nenhum local apropriado para acampamento por muitos quilômetros seguidos. Para complicar, o rio se dividia em torno de uma série de ilhas, e um dos participantes (Edu, 35) havia ficado para trás (longe do alcance de rádio) para realizar suas fotografias.

Eduardo observa detalhes nas baías do Guaporé

 

Uma rápida consulta na carta topográfica mostra o final das ilhas e uma antiga fazenda quinze quilômetros adiante, ou seja, mais duas horas de remada. Optamos por deixar mais um participante (Linilson, 45) para trás com o objetivo de informar ao retardatário a decisão de apertar o passo até a tal fazenda nesse fim de tarde. O único temor é que eles peguem um longo trecho de remada noturna, embora este rio não ofereça perigos.

Margens inundadas por quilômetros

 

Os próximos quilômetros também não mostraram qualquer sinal de ponto para acampamento, com margens muito baixas e terreno alagadiço. Aos poucos passávamos a realmente depender da informação na carta topográfica. Existiria algo lá ainda, mais de 30 anos depois? De modo incrível, no exato ponto indicado, a margem esquerda começa a sofrer uma pequena elevação e formação de terreno seco. Pouco mais adiante encontramos os vestígios de uma antiga cerca e área de pastagem abandonada. Dessa vez escapamos da possibilidade de dormirmos nas canoas! Pouco mais tarde chegam os dois companheiros, já com as últimas luzes do final do dia.

Entardecer no Guaporé (foto: E. Carvalho)

 

Em função do cansaço (e como eu era o responsável pela janta desse dia), resolvi montar logo a cozinha e preparar minha especialidade. Todos comeram rapidamente e ficamos pouco tempo em silêncio contemplando as estrelas.

Cozinhando para muitos famintos! (foto: E. Carvalho)

 

Alguns já estavam entrando em suas barracas quando o "Vô Caco" (Eurico, 67) aparece com a "novidade": sair remando à meia noite (quando surgiria a lua) e puxar até o final em um só dia. De imediato ele conseguiu convencer só mais um, mas devo admitir que fiquei bastante tentado a remar por toda a madrugada sob a fraca luz da lua em seu final de quarto minguante.

Fogueira e estrelas! Muitas estrelas!

Pouco depois da meia-noite acordo com o movimento dos dois e também do Marcos (47), que aparece com uma cara de "não sei se vou ou não vou". Ainda sob tentação arrisquei um "se vocês me derem 30 minutos vou com vocês", ao que eles concordaram..... Marcos confirma que também vai e, assim, sob a mínima luz das lanternas de cabeça, desmontamos as barracas e enfiamos tudo nos sacos estanques. Em apenas 15 minutos já estávamos colocando as canoas na água, debaixo de um céu com milhões de estrelas. Na escuridão as dezenas de baías e desvios do rio transformam-se em um enorme labirinto. Perde-se totalmente a noção de profundidade e as margens parecem se sobrepor em cada curva, dando a exata sensação de "fim de caminho". Em um rio repleto de braços laterais, isso pode ser "desanimador". É nessas horas que uma preparação detalhista mostra seu valor, pois havíamos determinado pontos de quilômetro em quilômetro no GPS, ou seja, mesmo sem muita certeza do caminho a seguir, bastava dar uma olhada na tela iluminada para perceber a direção até atingir o próximo ponto. Para completar, após apenas uma hora de remada surgem nuvens inesperadas para encobrir a lua já diminuta, deixando nosso caminho completamente escuro. Troco as pilhas do GPS pois, pelo jeito, ele vai ficar aceso por horas a fio, orientando nosso caminho entre árvores que parecem triplicar de tamanho e invadir o meio do rio a toda hora. Seguimos em frente em silêncio. As pupilas dilatadas ao extremo, assim como nossa imaginação. Lembro-me bem de um momento em que passamos próximos a um tufo flutuante de vegetação onde tive a sensação de que estávamos em altíssima velocidade. É incrível como o escuro altera nossa "realidade". Entre quatro e cinco horas da manhã sofremos com uma onda de frio intenso, a qual nos obrigou a buscar casacos e alguma coisa para comer no fundo dos sacos estanques. Juntamos as canoas e fizemos um breve café da manhã ao sabor da fraca corrente. Em absoluto silêncio passamos por um grupo de casas ribeirinhas com luzes acesas. Talvez um dos tais quilombos perdidos nas margens do Guaporé? Aos poucos a luz do dia começa a dar seus primeiros sinais, criando um dos mais belos espetáculos de toda a viagem. Algumas nuvens que ainda resistiam no céu refletem a intensa luz vermelha do sol nascente, e por sua vez são refletidas nas calmas águas do rio. Parece que estamos navegando no meio do céu e da água em chamas. Tiro dezenas de fotos na expectativa de que pelo uma consiga expressar uma parte de tanta beleza.

 

Céu e rio parecem em chamas!

 

De repente nos damos conta de que a noite passou rápido. Muito rápido. Remamos mais de 30 quilômetros e nem percebemos. O dia já está claro e nosso objetivo final está há apenas poucas horas; o GPS mostra que já acumulamos 230 quilômetros de passeio. Cabe ressaltar, entretanto, que apertamos um pouco o passo na remada de modo a ganhar três dias para explorar outras possibilidades na região, como o Rio Verde e a Serra de Ricardo Franco, onde fica o Parque Estadual de mesmo nome.

 

Trecho final do Rio Guaporé

 

Chegamos ao portinho da pousada ainda cedo e logo pudemos desfrutar alguns confortos "quase esquecidos": banho quente, bebidas geladas, comida "de verdade". Aproveitamos para secar e reorganizar os equipamentos, que ainda ficariam mais uma semana esquecidos nos carros. Deixamos apenas os equipamentos de canoagem à mão, pois queremos remar no famoso Rio Verde (fronteira Brasil-Bolívia) no dia seguinte. Segundo o Juliano, simpático proprietário da fazenda/pousada, a melhor opção seria colocar as canoas na carreta e tentar atingir um ponto mais alto do Verde através de uma estrada abandonada. Muito atencioso, ele também se dispõe a ir à frente com o trator, caso seja necessária alguma "limpeza".

Apenas duas horas depois chega (sozinho!) o Marcelo PL (37). Acordou com nossos ruídos na noite mas "perdeu a largada principal". Resolveu vir assim mesmo, sem GPS e sem cópias das cartas topográficas. Segundo ele, "na pior das hipóteses teria apenas que esperar o dia nascer para se encontrar". É doido!!! Aproveitando nosso espanto disse que viu até onça, mas acho que aí já é abusar um pouco de nossa credulidade....

Onça??? Que onça??? (foto: E. Carvalho)

 

No meio da tarde chegam os remanescentes.... Aos poucos o varal da fazenda vai ficando repleto de coberturas de barracas, camisetas mal-lavadas, coletes flutuadores, meias encardidas, etc. Entre dezenas de latinhas e um jantar fantástico confirmamos o programa para o dia seguinte.

Remando em duplas nas águas transparentes do Rio Verde - MT

 

O trator vai limpando a estrada que foi invadida pela vegetação; atrás seguimos com um carro puxando a carreta repleta de canoas. Para simplificar resolvemos descer em "duplas". Por sorte sou escalado para a "famosa" canoa do Sadao (42), toda em kevlar e muito leve. A estrada termina em um barranco alto na margem do rio, o qual exigiu algum malabarismo para ser vencido. Do lado boliviano encontra-se o Parque Nacional Noel Kempff que, segundo escutamos, correspondia a uma enorme fazenda de um dos maiores traficantes de drogas do mundo. Ao ser desapropriada a fazenda foi transformada em parque e suas luxuosas instalações convertidas em sede e casas de apoio. O Verde nasce poucos quilômetros acima, é raso e com fundo arenoso, o que torna suas águas bem transparentes. Podemos ver algumas arraias e diversos peixes, embora sempre abaixo do esperado (ou "propagandeado"?) para a região.

 

Diferentemente do Guaporé, aqui a seca já se mostra mais cedo e encontramos praias de areias limpas em quase todas as curvas. Seguimos apenas poucas horas até o encontro com o Guaporé, que daí em diante se transforma na divisa oficial entre os países. Entramos por uma baía (do Pintadinho) onde os carros estariam esperando nosso retorno. Um local com enorme potencial turístico, mas arrasado pelas queimadas para formação de pasto. Uma pena que nossa expedição em canoas tenha terminado neste ambiente tão alterado. Mas ficam na memória os outros tantos trechos de extrema beleza. Com o final da programação básica, nosso grupo se dividiu entre aqueles que retornariam imediatamente a SP e outros que ainda poderiam desfrutar mais alguns dias. Ainda bem que fiquei no segundo, pois pudemos visitar locais incríveis no - abandonado! - Parque Estadual Ricardo Franco (fotos abaixo). Mas essa já é outra história....aguarde.

 

Participantes: Eurico Cabral de Oliveira (67), naturalista; Sadao Matsuda (42), gerente de informática; Antonio Carlos Osse (41), biólogo e produtor de equipamentos para canoagem de expedição; Linilson Padovese (45), engenheiro; Marcos Cabo Verde (47), empresário; Paulo Kuntz (37), livre pensador; Marcelo Cunha (34), especialista em segurança do trabalho; Eduardo Carvalho (35), biólogo.

Cartas Topográficas: MI-2147 (Mato Grosso); MI-2102 (Serra da Borda); MI-2101 (Ricardo Franco); MI-2057 (Betânia) e MI-2013 (Morro Sem Boné), todas em escala 1:100 mil.

Equipamentos de Canoagem: Canoas canadenses, remos, sacos estanques e outros acessórios da Companhia de Canoagem/SP - www.companhiadecanoagem.com.br (11) 4192-3282 / 9109-8765

Apoios locais: Pousada Cascata (65) 3259 1154; Pousada Paço das Onças pacodasoncas@hotmail.com Mário Friedländer mariofriedlander@top.com.br Taxista Beto (65) 3259-1202

 

 

Companhia de Canoagem, 2007